De Gabriele Greggersen para Ultimato
O livro Deus em Questão, de Armand Nicholi, tem por objetivo apresentar os argumentos de um ateu e de um cristão sobre os mesmos assuntos: Deus, amor e sexo. O que a maioria dos leitores não sabia é que apesar da considerável diferença de idade (42 anos), eles tinham muito em comum:
As experiências de infância de Freud e Lewis revelam um paralelismo considerável. Tanto Freud quanto Lewis, quando meninos, tinham dons intelectuais que permitiam antever o profundo impacto que eles provocariam como adultos. Ambos sofreram perdas significativas nos primeiros anos de vida. Ambos tinham um relacionamento difícil, cheio de conflitos com os seus pais. Ambos foram instruídos desde cedo na fé da sua família e registraram uma aceitação nominal daquela fé. Ambos rejeitaram o sistema de fé anterior e se tornaram ateus na adolescência. Ambos leram autores que os persuadiram a rejeitar as crenças nominais da infância. Freud foi fortemente influenciado por Feuerbach e os muitos cientistas que ele estudou quando estudante de medicina e Lewis, pelos seus professores, que lhe davam a impressão de que “as ideias religiosas não passavam de ilusão... uma espécie de absurdo endêmico”. Lewis, entretanto, acabou rejeitando o ateísmo e abraçou a mesma visão que um dia havia considerado absurda. Como ele explicaria essa mudança drástica? O que levou Freud a continuar rejeitando a rica herança espiritual da sua família e permanecer ateu? (NICHOLI, 2005, p. 42-43)
Na primeira parte do livro, Nicholi analisa o percurso dos dois protagonistas, chamando a atenção sobre as suas experiências com a religião na infância, ambas negativas, mas com resultados contrastantes: uma adesão ao ateísmo materialista e uma conversão ao cristianismo após os 30 anos de idade. Lewis tendo sido influenciado fortemente na sua posição de ateu por Freud utiliza em parte os argumentos dele como base para apresentar as respostas alternativas do cristianismo. Os dois posicionamentos contrastam na prática principalmente face à morte de entes queridos e da própria morte. Enquanto Freud demonstra um medo e até pavor diante dela, Lewis demonstra uma serenidade sobrepujante ao período de “lamentações” da perda (conferir “Anatomia de uma Dor”).
Descobrimos ainda o celibato que Freud decidiu adotar nas últimas décadas de sua vida com sua esposa, que torna difícil entender como foi que ele se tornou o fetiche da liberalização sexual nas sociedades ocidentais; além de seu pedido ao seu médico, de que praticasse a eutanásia, quando ele ficou sabendo que seu câncer era terminal.
O primeiro ponto em que Lewis e Freud discordam teoricamente é a questão da criação do universo: se há ou não uma inteligência para além da natureza. Freud tinha uma visão naturalista, enquanto Lewis redefine o próprio conceito de “natureza”, inscrevendo-o no contexto maior da criação, visão essa que herda da leitura e estudo dos grandes clássicos cristãos da Idade Média. Nessa perspectiva criacionista, a natureza admite a possibilidade do sobrenatural, sem, com isso, necessariamente negar a ciência.
Outra questão muito importante é a moral: o que define as nossas atitudes, uma convenção social ou uma “lei” moral? Freud acreditava que as sociedades, para o bom convívio, tinham que se submeter a uma “ditadura da razão” (2005, p. 73), e confessou ao seu amigo, pastor Pfister, que não se preocupava muito com o certo e errado (FREUD, apud NICHOLI, 2005, p. 73). Já Lewis, depois de sua conversão, passou a crer que a moral segue leis parecidas com as leis da matemática: todos nós sabemos em linhas gerais o que é certo e errado, porque elas estão inscritas na nossa natureza. Um dos grandes dilemas da humanidade, que é um dos motivos para a nossa angústia, é que sabemos o que é certo fazer, mas não conseguimos praticar o certo o tempo todo.
O tema da “realidade” é outro assunto importante do livro. Quando em “O Futuro de uma Ilusão” Freud fala com orgulho do filho que rejeita os contos de fada, Lewis diria que o filho estava adotando uma postura demasiadamente “adulta” para a sua idade e que muitos “adultos” podem aprender com o tipo de realismo que se encontra subjacente ao mundo das fadas. E nisso ele é completamente chestertoniano. Em uma de suas obras-primas, “Ortodoxia”, no capítulo dedicado aos contos de fada, Chesterton afirma: “O país das fadas nada mais é do que o país ensolarado do bom-senso”. (CHESTERTON, 2007, p. 82).1
Nicholi deixa clara a importância que Chesterton teve no processo de conversão de Lewis para o cristianismo, que Freud veria como fenômeno patológico e como cada vez mais profissionais da área reconhecem experiências espirituais como fenômenos não ligados a neuroses. Lewis também acreditava, ao contrário de Freud, que, se temos “desejos reprimidos”, isso aponta para a alguma realidade concreta. Não podemos simplesmente “inventar” anseios do nada, nem mesmo a partir de algum mito presente no inconsciente coletivo. Se temos desejo por coisas espirituais e por um Deus, ele deve existir concretamente. Toda a concepção de Lewis em relação à ilusão, à ficção e ao imaginário é diferente da de Freud em seus pressupostos e suas implicações. O pressuposto para Lewis é um mundo criado por um Ser Infinito que imprimiu a sua imagem no homem e essa impressão, essa imagem, faz com que ele sinta saudade ou um “longing”, um anseio, por seu Criador. Para Freud, não há essa figura do criador, o mundo veio do nada e o desejo pelo infinito e por coisas espirituais residem em um enorme ludibrio coletivo. Enquanto para um as coisas espirituais e de imaginação apontam para Deus, para outro elas apontam para uma doença crônica e coletiva. Em Lewis a imaginação, que assume uma dimensão tão positiva, quanto à própria ilusão e a culpa, que longe de ser uma neurose, como em Freud, apontam para a verdade da queda e limitação do homem.
Lewis afirma que crê em Deus, não como uma fantasia ou pura e simples imaginação, mas como “crê no sol, que não pode encarar diretamente, mas por meio do qual ele consegue ver e reconhecer todas as demais coisas”.
Ele também acreditava que “fazer de conta”, expressão usada por Freud para se referir à hipocrisia que muitas vezes envolve a religião, faz parte da natureza humana e que imitar é um dos comportamentos mais naturais do homem, precisamente porque ele foi criado como uma “imitação de Deus”. Acontece que no cristianismo o faz-de-conta acaba se tornando em realidade. Isso se mostra na história, citada em “Cristianismo Puro e Simples”, do rei que, por ser feio, passou a usar uma máscara para não assustar os seus súditos, e quando ele resolve retirá-la a assumir o seu rosto, qual não foi sua surpresa, quando viu que o rosto havia assumido a forma da máscara.
Nota:
1. Como foi bem observado por Nicholi, Lewis também deve a outro clássico de Chesterton, “O Homem Eterno”, suas convicções cristãs.
Referências:
CHESTERTON, G.K. Ortodoxia. São Paulo: Mundo Cristão, 2007.
FREUD, Sigmund. O Futuro de Uma Ilusão, O Mal-Estar na Civilização e Outros Trabalhos (1927-1931) Rio de Janeiro: Imago, 1974. (Edição Standard Brasileira de Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v XXI). Disponível aqui. Acesso 16 Ago. 2012.
NICHOLI Armand. Deus em Questão: C.S. Lewis e Sigmund Freud debatem Deus, amor, sexo e o sentido da vida. Trad. Gabriele Greggersen. Viçosa: Ultimato, 2005.
Nenhum comentário:
Postar um comentário