quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Amor de Deus e Amor próprio

"A procura do bem é a procura de uma vida que não conhece a morte, a realidade plena da sua própria vida que está ao abrigo de toda a perda. Esta vida sem morte é Deus, Deus amado e procurado enquanto eternidade. Esta eternidade é o futuro absoluto: se o homem deseja a realidade plena da sua própria vida, procura-se e deseja-se como porvir e não ama o eu na primeira pessoa, que encontra como dado na realidade terrestre. O ódio a si e a renúncia ao si levam ao eu do presente, dado, mortal. O critério do amar justo ou mau não é a renúncia a si em absoluto mas uma renúncia pelo amor do eterno que nos espera: 'Abstém-te de amar nesta vida, para não perderes a vida eterna (...) Se ocasionalmente amaste mal, então odiaste; se odiaste com conhecimento de causa, então amaste'. Amor de Deus e amor de si caminham lado a lado e não se contradizem. No amor de Deus, o homem ama-se a si próprio, ao homem que há-de-vir , na pertença desejada a Deus, logo, a si mesmo enquanto aquilo que será eterno. Esta renúncia de si é pseudocristã não porque não procede da consciência do seu próprio ser de criatura nem da insuficiência de tudo que é humano que Deus chamou à obediência da fé, e pelo que, desde logo, toda a autonomia é orgulhosa (São Paulo), mas porque ela é a última consequência, ultrapassando-se a si mesma, do amor, do desejo, da procura do seu próprio bem. E é apenas porque o homem não constitui ele próprio um bem que lhe permite ser feliz que não é auto-suficiente, que deve procurar-se e que nessa procura o bem leva-o a esquecer-se de si próprio. Ele pode perder-se se se esquecer nos bens deste mundo. O desejo é, pois, a estrutura fundamental do ser que não se possui a si mesmo e que corre o perigo de se perder. No abandono de Deus, o homem é empurrado para fora de si (extra se) e perde-se aí."

(Arendt, Hannah. O conceito de amor em Santo Agostinho. Trad. Alberto Pereira Dinis. Lisboa: Instituto Piaget, s.d., p. 33-34)

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