"No ano em que morreu o rei Uzias, eu vi o Senhor assentado sobre um alto e sublime trono, e as orlas do seu manto enchiam o templo. Ao seu redor havia serafins; cada um tinha seis asas; com duas cobria o rosto, e com duas cobria os pés e com duas voava. E clamavam uns para os outros, dizendo: Santo, santo, santo é o Senhor dos exércitos; a terra toda está cheia da sua glória. E as bases dos limiares moveram-se à voz do que clamava, e a casa se enchia de fumaça. Então disse eu: Ai de mim! pois estou perdido; porque sou homem de lábios impuros, e habito no meio dum povo de impuros lábios; e os meus olhos viram o rei, o Senhor dos exércitos! Então voou para mim um dos serafins, trazendo na mão uma brasa viva, que tirara do altar com uma tenaz; e com a brasa tocou-me a boca, e disse: Eis que isto tocou os teus lábios; e a tua iniqüidade foi tirada, e perdoado o teu pecado. Depois disto ouvi a voz do Senhor, que dizia: A quem enviarei, e quem irá por nós? Então disse eu: Eis-me aqui, envia-me a mim." (Isaías 6: 1-8)
O poema seguinte foi escrito por Aleksandr Púchkin (1799-1837), considerado o fundador da literatura moderna russa e maior poeta nacional russo. O poema trata liricamente da vocação do profeta, inspirado no trecho transcrito de Isaías. O texto mostra a purificação dos lábios realizada por Deus na vida do profeta e sua consagração como porta-voz d'Ele para "inflamar os corações humanos". Que possamos dedicar nossas vozes a proclamar a Palavra de Deus ao coração do mundo!
Nota: O trabalho de tradução de poemas exige uma reconstrução que, ao mesmo tempo, mantenha fidelidade de conteúdo e beleza de forma. Felizmente, temos duas boas traduções desse poema em português. Transcrevemos abaixo as duas: a primeira de Nina e Filipe Guerra, tradução portuguesa; e a segunda de Boris Schnaiderman e Nelson Ascher, tradução brasileira.
O profeta
Por A. S. Púchkin.
Tradução por Nina Guerra e Filipe Guerra, extraído de: Frank, Joseph. Dostoiévski: O manto do profeta. São Paulo Edusp, 2007, p. 24.
Com o espírito morto de sede,
Rojo-me num deserto escuro,
E voa um anjo de seis asas
Na encruzilhada dos meus rumos.
Com dedos leves como o sonho
O serafim toca-me os olhos:
Uns olhos profetas se abriram
Como os da águia assustada.
Eis que me assoma os ouvidos
E os enche de alvoroço:
Escuto o tremer do céu, o alto
Vôo dos anjos, o deslizar
Subáqueo do monstro marinho
E a rosa a crescer no vale.
Sobre minha boca se inclina
E arranca a língua ardilosa,
Carpideira, iníqua e vã,
E com a destra ensangüentada
Põe o dardo da sábia cobra
Na minha boca silenciada.
Com a espada me corta o peito,
O meu coração latejante
Despega, e no vão negro do seio
O anjo mete a brasa viva.
Estou, como morto, no deserto
E a voz de Deus por mim clama:
Ergue-te, ouve e vê, profeta,
Da minha vontade te tomes,
Mares e terras percorre, queime
Meu verbo no coração dos homens.
Tradução de Boris Schnaiderman e Nelson Ascher, extraído de: Púchkin, Aleksandr. A dama de espadas: prosa e poemas. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 240-241.
Num ermo, eu de âmago sedento
já me arrastava e, frente a mim,
surgiu com seis asas ao vento,
na encruzilhada, um serafim;
ele me abriu, com dedos vagos
qual sono, os olhos que, pressagos,
tudo abarcaram com presteza
que nem olhar de águia surpresa;
ele tocou-me cada ouvido
e ambos se encheram de alarido:
ouvi mover-se o firmamento,
anjos cruzando o céu, rasteiras
criaturas sob o mar e o lento
crescer, no vale, das videiras.
Junto a meus lábios, rasgou minha
língua arrogante, que não tinha,
salvo enganar, qualquer intuito,
da boca fria onde, depois,
com mão sangrenta ele me pôs
um aguilhão de ofídio arguto.
Vibrando o gládio com porfia,
tirou-me o coração do peito
e colocou carvão que ardia
dentro do meu tórax desfeito.
Jazendo eu hirto no deserto,
o Senhor disse-me: "Olho aberto,
de pé, profeta e, com teu verbo,
cruzando as terras, os oceanos,
cheio do meu afã soberbo,
inflama os corações humanos!"
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