“Disse mais o Senhor Deus: não é bom ao ser humano ser só; far-lhe-ei um socorro que lhe corresponda como uma imagem do outro lado do espelho” (tradução livre - Gênesis 2. 18).
O foco do texto em epígrafe é claramente a humanidade, o ser humano genérico! Esta interpretação é evidente tendo em vista o uso do termo hebraico adam para designar homem, abrangendo ambos os gêneros, em preferência a zakar (Gênesis 1. 27) ou iysh (Gênesis 2. 23) ambos usados exclusivamente para designar homem, sexo masculino. O termo adam ao lado de enosh (Salmo 8. 4) é termo designativo de ambos os gêneros (homem e mulher) como fica claro em Gênesis 1. 27: “Criou, pois, Deus o homem (ADAM) à Sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem (ZAKAR) e mulher (NEQEBAH) os criou”. Posteriormente o adam passou a ser também o nome próprio do primeiro homem: Adão.
Tal compreensão é fundamental para entendermos que o Deus revelado nas Escrituras não é machista e nem feminista. Ele não concentra sua atenção e preocupação sobre apenas um dos dois gêneros. Ele tem propósitos para ambos, e ambos são iguais em dignidade diante dEle e alvo do Seu incondicional amor e cuidado. Ambos são também “por um pouco, menor do que Deus” coroados por Ele “de glória e de honra” (Salmo 8. 4). Além disso são igualmente instrumentos úteis nas mãos de Deus. Curto: Deus não é ginófobo!
O ser humano criado é, no referido texto, alvo de um (auto) diagnóstico divino: “não é bom que o ser humano viva só”! Para Deus um ser humano que vive só, alimenta-se só, trabalha só, se diverte só, decide só e que articula sua abordagem do mundo só, sem interlocutor ou contraponto, está aquém do ideal e do projeto divino. O ser humano que vive portando-se como senhor absoluto da verdade, sem aceitar a convivência com outro como interlocutor e contraponto, preferindo o monólogo e não diálogo, vive só! Na verdade o primeiro “não é bom” da história humana não foi direcionado ao ser humano criado por Deus, mas à existência solitária!
A fim de suprir tal “existência solitária” – e há muitos que vivem assim, mesmo rodeados de uma multidão – Deus providencia a Sua solução: um socorro que lhe corresponda como uma imagem do outro lado do espelho” (hebr. etzer kenegdô). O etzer (substantivo masculino singular) tem o sentido de auxílio, ajuda e socorro, não como inferior ou subalterno, mas exatamente o contrário, como superior no sentido de ter condições de auxiliar, ajudar e socorrer quem precisa e está em condição de desvantagem (conf. II Reis 14. 26, Jó 29. 12, Salmo 30. 10, Salmo 54. 4, Salmo 72. 12). O ser humano só estava em desvantagem e precisava de alguém que o ajudasse, o socorresse, quem o auxiliasse a viver melhor. O texto mais paradigmático do uso de etzer é com certeza I Samuel 7: 12: “Então, tomou Samuel uma pedra, e a pôs entre Mispa e Sem, e chamou o seu nome Ebenézer (hebr. eben-ha-etzer = pedra de auxílio) e disse: Até aqui nos ajudou o SENHOR.” O outro, homem e/ou mulher, são para nós esse socorro divino para nos ajudar a não mais vivermos sós! Neste sentido eles são para nós representantes do Deus chamado largamente na Bíblia de auxílio (etzer). Não é à-toa que Jacó, ao se reconciliar com Esaú, disse: “porquanto tenho visto o teu rosto, como se tivesse visto o rosto de Deus” (Gênesis 33. 10)
Finalmente este socorro providenciado por Deus é qui nagad (na frente de, diante de, à frente de, em frente de). A idéia é a de um espelho no qual ao se olhar o ser humano vê do outro lado outro ser humano semelhante. O homem não pôde encontrar esse outro semelhante entre os animais (Gênesis 2. 20), por isso o outro será chamado “osso dos ossos” e “carne da carne”. É da mesma matéria prima!
Ninguém precisa mais viver sozinho! Ninguém deve viver mais sozinho! Por isso Deus oferece no outro, cônjuge, irmão, irmã, pai, mãe, parente, amigo, amiga, semelhante, um socorro como companhia e/ou contraponto olhado no outro lado do espelho da vida. Por isso, “Deus faz que o solitário viva em família” (Salmo 68. 6), inclusive na família de Deus, a Igreja.
Pr. Josué Mello Salgado
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