quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Anatomia de uma dor


C. S. Lewis escreveu várias obras de caráter apologético. Sendo um cristão pertencente à elite intelectual e acadêmica de seu país, Lewis várias vezes foi convidado a responder às objeções levantadas pelos seus colegas ateus. Um dos tópicos enfrentados com maior brilhantismo pelo grande escritor irlandês foi a questão do sofrimento, que pode ser traduzida na pergunta: "Se Deus é bom e todo-poderoso, por que permite que suas criaturas sofram?". A resposta de Lewis a essa pergunta resultou no livro O problema do sofrimento, que é até hoje um dos livros mais lidos do conjunto da vasta obra lewisiana. Nessa dissertação, Lewis afirma a famosa tese do sofrimento como o "megafone divino" pelo qual Deus fala com a criatura e aponta para seu estado decaído bem como para a necessidade de arrependimento.


Todavia, Lewis, durante sua idade adulta, teve uma vida bastante confortável como professor universitário reconhecido entre seus pares e alunos, passando distante de qualquer sofrimento intenso. São da sua infância e adolescência suas memórias mais vívidas de sofrimento (para maiores informações sobre essa época da vida do autor, conferir seu escrito autobiográfico: Surpreendido pela Alegria). Foi somente no final de sua vida que Lewis enfrentou a dor mais marcante de sua história: a morte de sua esposa Helen Joy Davidman.


O autor das Crônicas de Narnia fora celibatário até os 59 anos de idade, quando casou-se com Helen. Durante três curtos anos, o solitário escritor desfrutou da felicidade conjugal ao lado de sua amada esposa. Quando a morte enfim a tomou de seus braços, Jack, como era conhecido pelos seus amigos mais íntimos, considerou toda a situação como uma espécie de ironia do destino: que ele demorasse tanto para desfrutar das alegrias (curiosamente o nome do meio de Helen era "Joy", que significa alegria) do casamento e que estas durassem tão pouco. Em seu luto, Lewis anotou seus sentimentos e reflexões a respeito da experiência traumática da morte de uma pessoa amada, que publicou sob o título A grief observed (traduzido para o português como A anatomia de uma dor).


Se O problema do sofrimento fala da dor em terceira pessoa, de forma distanciada, A anatomia de um dor fala dela em primeira pessoa. Nesta obra, Lewis não trata da dor em geral, como experiência comum a todos, mas lida com o seu próprio pesar e talvez, por isso mesmo, essa seja uma obra ainda mais poderosa do que a sua primeira dissertação sobre o tema.


Sob muitos aspectos, o relato de Lewis a respeito do seu próprio sofrimento se assemelha ao relato de Jó. Assim como Jó, Lewis não consegue entender completamente o sentido do sofrimento em sua vida, o que o faz questionar profundamente a aparente omissão de Deus nesse momento tão difícil. Esse sentimento de revolta contra tal situação pode ser ilustrada pela forte passagem transcrita abaixo:


"Mas, volte-se para Ele, quando estiver em grande necessidade, quando toda outra forma de amparo for inútil, e o que você encontrará? Uma porta fechada na sua cara, ao som do ferrolho sendo passado duas vezes pelo lado de dentro. Depois disso, silêncio." (p. 31)


Porém, assim como Jó, Lewis não acredita que o sofrimento seja, realmente, um fato desabonador da existência de Deus, mas um desafio ao nosso entendimento do caráter e da conduta dEle.


Após uma reflexão amarga a respeito da dor, a conclusão de Lewis é a de que:


"Deus não esteve fazendo uma experiência com minha fé nem com meu amor a fim de avaliar-lhes o caráter. Ele já sabia isso. Era eu que não sabia. Nesse julgamento, ele nos faz ocupar o banco dos réus, o banco das testemunhas e o assento do juiz de uma só vez. Sempre soube que meu templo era um castelo de cartas. A única forma de me fazer compreender o fato foi colocá-lo abaixo."


"Toda a realidade é iconoclasta. A pessoa amada na Terra, até mesmo nesta vida, não cessa de triunfar sobre a simples idéia que você faz dela. E você quer que seja assim; você a quer com todas as resistências, todas as faltas, toda sua imprevisibilidade, isto é, em sua realidade franca e independente.


(...)


Não a minha idéia a respeito de Deus, mas o próprio Deus. Não a minha idéia de H., mas ela mesma. E também não a idéia que eu tenho de meu vizinho, mas meu vizinho.


(...)


Uma vez mais, eu pareço estar construindo com cartas. E se estiver, Ele uma vez mais haverá de derrubar a estrutura ao chão. Derrubá-la-á tantas vezes quantas forem necessárias." (p. 71 e 83-84)


Assim como em Jó, o resultado final da dor no relato de Lewis foi destruir uma imagem enganosa, um ídolo, de Deus para refazê-la de forma correta. Nas palavras do livro de Jó: "Eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos te vêem" (Jó 42:5).


A complexidade da experiência do sofrimento no mundo tem conseqüências relevantíssimas para o nosso saber teológico. Aquela que é mais evidenciada tanto por Lewis, quanto pelo livro de Jó é a necessidade de reconhecer a limitação do nosso entendimento a respeito dos propósitos e do caráter de Deus, o que se deve traduzir em uma constante humildade em relação à nossa capacidade de conhecer e em uma submissão a auto-revelação divina. Nesse sentido, podemos comparar as passagens abaixo de A anatomia de um dor e do livro de Jó:


"Quando apresento essas questões a Deus não deixo de ter uma resposta; mas, em vez disso, uma variável do tipo "sem resposta". Não se trata da porta fechada. É mais como uma contemplação silente, com certeza não impiedosa. Como se Ele meneasse a cabeça não em recusa, mas deixasse de lado a pergunta. Algo como 'Fique em paz, meu filho; você não entende.'. É mais como um olhar fixo e silencioso, com certeza não impiedoso.


Pode um mortal fazer perguntas que Deus considera não passíveis de resposta? Absolutamente, sim. Todas as perguntas sem sentido não são passíveis de resposta. Quantas horas há num quilômetro? O amarelo é quadrado ou redondo? Provavelmente, metade das perguntas que fazemos - metade de nossos grandes problemas teológicos e metafísicos - pertençam a essa categoria." (p. 85)

"Depois disto, o SENHOR, do meio de um redemoinho, respondeu a Jó: Quem é este que escurece os meus desígnios com palavras sem conhecimento? Cinge, pois, os lombos como homem, pois eu te perguntarei, e tu me farás saber. Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra? Dize-mo, se tens entendimento. Quem lhe pôs as medidas, se é que o sabes? Ou quem estendeu sobre ela o cordel? Sobre que estão fundadas as suas bases ou quem lhe assentou a pedra angular, quando as estrelas da alva, juntas, alegremente cantavam, e rejubilavam todos os filhos de Deus? Ou quem encerrou o mar com portas, quando irrompeu da madre; quando eu lhe pus as nuvens por vestidura e a escuridão por fraldas? Quando eu lhe tracei limites, e lhe pus ferrolhos e portas, e disse: até aqui virás e não mais adiante, e aqui se quebrará o orgulho das tuas ondas? Acaso, desde que começaram os teus dias, deste ordem à madrugada ou fizeste a alva saber o seu lugar, para que se apegasse às orlas da terra, e desta fossem os perversos sacudidos? A terra se modela como o barro debaixo do selo, e tudo se apresenta como vestidos; dos perversos se desvia a sua luz, e o braço levantado para ferir se quebranta. Acaso, entraste nos mananciais do mar ou percorreste o mais profundo do abismo? Porventura, te foram reveladas as portas da morte ou viste essas portas da região tenebrosa? Tens idéia nítida da largura da terra? Dize-mo, se o sabes. Onde está o caminho para a morada da luz? E, quanto às trevas, onde é o seu lugar, para que as conduzas aos seus limites e discirnas as veredas para a sua casa? Tu o sabes, porque nesse tempo eras nascido e porque é grande o número dos teus dias! Acaso, entraste nos depósitos da neve e viste os tesouros da saraiva, que eu retenho até ao tempo da angústia, até ao dia da peleja e da guerra? Onde está o caminho para onde se difunde a luz e se espalha o vento oriental sobre a terra? Quem abriu regos para o aguaceiro ou caminho para os relâmpagos dos trovões; para que se faça chover sobre a terra, onde não há ninguém, e no ermo, em que não há gente; para dessedentar a terra deserta e assolada e para fazer crescer os renovos da erva? Acaso, a chuva tem pai? Ou quem gera as gotas do orvalho? De que ventre procede o gelo? E quem dá à luz a geada do céu? As águas ficam duras como a pedra, e a superfície das profundezas se torna compacta. (..) Disse mais o SENHOR a Jó: Acaso, quem usa de censuras contenderá com o Todo-Poderoso? Quem assim argúi a Deus que responda. Então, Jó respondeu ao SENHOR e disse: Sou indigno; que te responderia eu? Ponho a mão na minha boca. Uma vez falei e não replicarei, aliás, duas vezes, porém não prosseguirei." (Jó 38 e 41:1-5)


Vale a pena ler A anatomia de um dor, trata-se de um livro curto e absolutamente rico em termos de reflexão pessoal e de espiritualidade.


Citações extraídas de: Lewis, C. S. A anatomia de um dor. Tradução de Alípio Franca, São Paulo: Vida, 2007

2 comentários:

  1. Eduardo Henrique Néris21 de outubro de 2009 às 17:11

    Excelente esse comentário resumido do livro "A anatomia de uma dor".
    Realmente nos inspira a pensar cada vez mais sobre nossa insignificância face ao Deus Eu Sou.

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  2. Obrigado pelo comentário, Edu! De fato, muitas vezes temos de exercer a humildade teológica e, em vez de falar sobre Deus apressadamente, agir como Jó e colocar a mão na boca em silêncio.

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