quinta-feira, 3 de setembro de 2009

O Profeta

"No ano em que morreu o rei Uzias, eu vi o Senhor assentado sobre um alto e sublime trono, e as orlas do seu manto enchiam o templo. Ao seu redor havia serafins; cada um tinha seis asas; com duas cobria o rosto, e com duas cobria os pés e com duas voava. E clamavam uns para os outros, dizendo: Santo, santo, santo é o Senhor dos exércitos; a terra toda está cheia da sua glória. E as bases dos limiares moveram-se à voz do que clamava, e a casa se enchia de fumaça. Então disse eu: Ai de mim! pois estou perdido; porque sou homem de lábios impuros, e habito no meio dum povo de impuros lábios; e os meus olhos viram o rei, o Senhor dos exércitos! Então voou para mim um dos serafins, trazendo na mão uma brasa viva, que tirara do altar com uma tenaz; e com a brasa tocou-me a boca, e disse: Eis que isto tocou os teus lábios; e a tua iniqüidade foi tirada, e perdoado o teu pecado. Depois disto ouvi a voz do Senhor, que dizia: A quem enviarei, e quem irá por nós? Então disse eu: Eis-me aqui, envia-me a mim." (Isaías 6: 1-8)


O poema seguinte foi escrito por Aleksandr Púchkin (1799-1837), considerado o fundador da literatura moderna russa e maior poeta nacional russo. O poema trata liricamente da vocação do profeta, inspirado no trecho transcrito de Isaías. O texto mostra a purificação dos lábios realizada por Deus na vida do profeta e sua consagração como porta-voz d'Ele para "inflamar os corações humanos". Que possamos dedicar nossas vozes a proclamar a Palavra de Deus ao coração do mundo!


Nota: O trabalho de tradução de poemas exige uma reconstrução que, ao mesmo tempo, mantenha fidelidade de conteúdo e beleza de forma. Felizmente, temos duas boas traduções desse poema em português. Transcrevemos abaixo as duas: a primeira de Nina e Filipe Guerra, tradução portuguesa; e a segunda de Boris Schnaiderman e Nelson Ascher, tradução brasileira.

O profeta

Por A. S. Púchkin.


Tradução por Nina Guerra e Filipe Guerra, extraído de: Frank, Joseph. Dostoiévski: O manto do profeta. São Paulo Edusp, 2007, p. 24.


Com o espírito morto de sede,

Rojo-me num deserto escuro,

E voa um anjo de seis asas

Na encruzilhada dos meus rumos.

Com dedos leves como o sonho

O serafim toca-me os olhos:

Uns olhos profetas se abriram

Como os da águia assustada.

Eis que me assoma os ouvidos

E os enche de alvoroço:

Escuto o tremer do céu, o alto

Vôo dos anjos, o deslizar

Subáqueo do monstro marinho

E a rosa a crescer no vale.

Sobre minha boca se inclina

E arranca a língua ardilosa,

Carpideira, iníqua e vã,

E com a destra ensangüentada

Põe o dardo da sábia cobra

Na minha boca silenciada.

Com a espada me corta o peito,

O meu coração latejante

Despega, e no vão negro do seio

O anjo mete a brasa viva.

Estou, como morto, no deserto

E a voz de Deus por mim clama:

Ergue-te, ouve e vê, profeta,

Da minha vontade te tomes,

Mares e terras percorre, queime

Meu verbo no coração dos homens.


Tradução de Boris Schnaiderman e Nelson Ascher, extraído de: Púchkin, Aleksandr. A dama de espadas: prosa e poemas. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 240-241.


Num ermo, eu de âmago sedento

já me arrastava e, frente a mim,

surgiu com seis asas ao vento,

na encruzilhada, um serafim;

ele me abriu, com dedos vagos

qual sono, os olhos que, pressagos,

tudo abarcaram com presteza

que nem olhar de águia surpresa;

ele tocou-me cada ouvido

e ambos se encheram de alarido:

ouvi mover-se o firmamento,

anjos cruzando o céu, rasteiras

criaturas sob o mar e o lento

crescer, no vale, das videiras.

Junto a meus lábios, rasgou minha

língua arrogante, que não tinha,

salvo enganar, qualquer intuito,

da boca fria onde, depois,

com mão sangrenta ele me pôs

um aguilhão de ofídio arguto.

Vibrando o gládio com porfia,

tirou-me o coração do peito

e colocou carvão que ardia

dentro do meu tórax desfeito.

Jazendo eu hirto no deserto,

o Senhor disse-me: "Olho aberto,

de pé, profeta e, com teu verbo,

cruzando as terras, os oceanos,

cheio do meu afã soberbo,

inflama os corações humanos!"

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